É importante entender e considerar as diferenças entre travar uma discussão nas redes sociais, ou criar um espaço público digital, que tem por objetivo receber da sociedade subsídios, argumentos de diferentes pontos de vista e ideias para a discussão da coisa pública.
O primeiro pressuposto que se adota é do impedimento do anonimato para coleta de informação. Não é possível transferir plenamente a discussão para as redes sociais, pois os autores, os participantes dessa discussão pela internet na maioria das vezes não podem ser identificados. As redes sociais permitem que o perfil que adotamos seja o que mais nos agrada, ou até mesmo podemos adotar vários perfis, um para cada situação. E com esses perfis podemos atuar em várias discussões e até com argumentações opostas entre si. Essa liberdade para criar perfis nos fóruns de discussão é uma característica das redes sociais, elas preservam a liberdade em detrimento a impor qualquer restrição, elas estimulam a discussão, o debate, o fórum virtual entre pessoas. As redes sociais têm o foco no usuário, um claro exemplo desse foco é que os usuários são senhores dos seus perfis e podem aceitar ou rejeitar membros em sua lista, esse foco importante para as redes sociais se distanciam dos pressupostos da discussão da coisa pública.
A identificação do autor nas redes sociais é muito difícil de comprovar sua autenticidade. Geralmente os sistemas que suportam essas aplicações são hospedados e desenvolvidos fora do país, o que torna mais difícil auditar e comprovar a autenticidade das informações registradas. Existem casos que fotos, vídeos, afirmações postadas na rede Internet demandaram ações na justiça para que sejam retiradas, ou os responsáveis identificados. Esse tema tem preocupado as autoridades de todo mundo e vem sendo discutindo o assunto para elaborar normas que possam regular e evitar as chamadas “fakenews”.
A Lei 12.126/2011 – Marco Civil da Internet, cujos conceitos sobre log’s de acesso, identificação do usuário, garantia de privacidade, registro temporário obrigatório, dentre outros, estão presentes na norma. Vejamos:
DA GUARDA DE REGISTROS DE CONEXÃO
Art. 11. Na provisão de conexão à Internet, cabe ao administrador do sistema autônomo respectivo o dever de manter os registros de conexão, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de um ano, nos termos do regulamento.
§ 1º A responsabilidade pela manutenção dos registros de conexão não poderá ser transferida a terceiros.
§ 2º A autoridade policial ou administrativa poderá requerer cautelarmente a guarda de registros de conexão por prazo superior ao previsto no caput.
§ 3º Na hipótese do § 2º, a autoridade requerente terá o prazo de sessenta dias, contados a partir do requerimento, para ingressar com o pedido de autorização judicial de acesso aos registros previstos no caput.
§ 4º O provedor responsável pela guarda dos registros deverá manter sigilo em relação ao requerimento previsto no § 2º, que perderá sua eficácia caso o pedido de autorização judicial seja indeferido ou não tenha sido impetrado no prazo previsto no § 3º.
SUBSEÇÃO II
DA GUARDA DE REGISTROS DE ACESSO A APLICAÇÕES DE INTERNET
Art. 12. Na provisão de conexão, onerosa ou gratuita, é vedado guardar os registros de acesso a aplicações de Internet.
Art. 13. Na provisão de aplicações de Internet é facultado guardar os registros de acesso dos usuários, respeitado o disposto no art. 7º.
§ 1º A opção por não guardar os registros de acesso a aplicações de Internet não implica responsabilidade sobre danos decorrentes do uso desses serviços por terceiros.
§ 2º Ordem judicial poderá obrigar, por tempo certo, a guarda de registros de acesso a aplicações de Internet, desde que se tratem de registros relativos a fatos específicos em período determinado, ficando o fornecimento das informações submetido ao disposto na Seção IV deste Capítulo.
§ 3º Observado o disposto no § 2º, a autoridade policial ou administrativa poderá requerer cautelarmente a guarda dos registros de aplicações de Internet, observados o procedimento e os prazos previstos nos §§ 3º e 4º do art. 11.
CAPÍTULO II
DOS DIREITOS E GARANTIAS DOS USUÁRIOS
Art. 7º O acesso à Internet é essencial ao exercício da cidadania e ao usuário são assegurados os seguintes direitos:
I – à inviolabilidade e ao sigilo de suas comunicações pela Internet, salvo por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;
II – à não suspensão da conexão à Internet, salvo por débito diretamente decorrente de sua utilização;
III – à manutenção da qualidade contratada da conexão à Internet, observado o disposto no art. 9º;
IV – a informações claras e completas constantes dos contratos de prestação de serviços, com previsão expressa sobre o regime de proteção aos seus dados pessoais, aos registros de conexão e aos registros de acesso a aplicações de Internet, bem como sobre práticas de gerenciamento da rede que possam afetar a qualidade dos serviços oferecidos;
V – ao não fornecimento a terceiros de seus registros de conexão e de acesso a aplicações de Internet, salvo mediante consentimento ou nas hipóteses previstas em lei.
Art. 8º A garantia do direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunicações é condição para o pleno exercício do direito de acesso à Internet
Diante desse cenário o poder público deve fazer uma consulta pública digital e não permitir o anonimato. Ao contrário disso, deve exigir cadastramento prévio daqueles que desejam participar da discussão da coisa pública no espaço público digital.
Então devemos fazer uma consulta pública digital na qual seja possível identificar aqueles que participam. Quando não for possível identificar o autor da contribuição, ela deve ser desconsiderada. Esse posicionamento é reforçado quando o comparamos com uma audiência pública. Nesse caso o cidadão é identificado, pois ele está presente para que possa participar, ou seja, não há o manto do anonimato. Em uma assembleia de bairro ocorre o mesmo, já que todos os membros são identificados, e na própria assembleia as opiniões expostas são relacionadas ao seu autor.
Estabelecido esse pressuposto, ou seja, não permitir o anonimato para participar de uma Consulta Pública Digital, devemos nos atentar a outro pressuposto importante, o da capacitação. Devemos entender que a capacitação se refere ao tema da Consulta Pública Digital e não sobre o uso da tecnologia. É importante capacitar a sociedade no assunto em discussão. A capacitação da sociedade é uma das principais condições para estabelecer um ciclo virtuoso de integração entre sociedade e governo. Para melhor exemplificar a capacitação vamos dar o exemplo da consulta pública realizada pela Câmara Municipal da cidade de São Carlos sobre o Novo Código Florestal Brasileiro. A Câmara Municipal de São Carlos disponibilizou no site oficial da Câmara, dentro da aplicação da consulta pública digital os seguintes textos referentes ao Novo Código Florestal em comparação com a Lei Municipal:
DESCRIÇÃO SOBRE O TEMA
A Câmara Municipal de São Carlos solicita a opinião da população em geral sobre a Proposta do Novo Código Florestal Brasileiro.
O tema é de interesse de toda a sociedade brasileira. Entre os pontos polêmicos do debate está a fixação de limites das Áreas de Preservação Permanente (APP).
As APPs são definidas pelo novo Código como áreas protegidas pela legislação, cobertas ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de conservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas.
A Constituição Federal estabelece em seu artigo 225 que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
A proposta do Código Florestal se confronta com a Lei Municipal 13.944/06, de São Carlos, nos limites das APPs.
No artigo 10º. a legislação são-carlense considera de Preservação Permanente as áreas, vegetadas ou não, situadas:
a) ao longo dos rios ou de qualquer curso d’água desde o seu nível mais alto em faixa marginal cuja largura mínima seja de 50,00 m (cinqüenta metros) em cada margem;
Porém, no novo Código Florestal Brasileiro existe proposta de reduzir para 30 metros os limites das APPs, como descrito no artigo 4º, inciso I, alínea “a”.
I – as faixas marginais de qualquer curso d’água natural, desde a borda do leito menor, em largura mínima de:
a) 30 (trinta) metros, para os cursos d’água de menos de 10 (dez) metros de largura, observado o disposto no artigo 35;
Conforme a Constituição Federal o município tem competência para legislar sobre meio ambiente em seu território, respeitando no mínimo os limites da legislação federal.
Sendo assim, a Câmara Municipal de São Carlos quer saber a sua opinião sobre a proposta do Novo Código Florestal Brasileiro que propõe reduzir o tamanho das Áreas de Preservação Permanente em comparação com os limites estabelecidos na Lei Municipal 13.944/06.
A descrição da Consulta Pública Digital de São Carlos disponibilizou informação para a discussão desse tema. O texto da descrição é objetivo e sucinto, todavia, sua leitura capacitou aqueles que leram e participaram. A Câmara Municipal disponibilizou ainda a Lei Municipal 13.944/2006 e o Parecer do Relator Deputado Federal Aldo Rebelo do PC do B de São Paulo sobre o Projeto de Lei 1.876/99 – Novo Código Florestal, como anexos, para aqueles que desejassem se aprofundar sobre o assunto. E por fim, após o termino da Consulta Pública Digital a Câmara Municipal realizou um Audiência Pública, com a presença do ex-prefeito (autor da Lei) e na época Deputado Federal Prof. Newton Lima.
Outro aspecto importante da capacitação da sociedade é estabelecer limites na discussão em torno do tema, e isso é importante para o debate, no exemplo citado, a consulta ficou focada praticamente na diferença entre a Lei Municipal e a Lei Federal, e disponibilizou a seguinte pergunta:
A proposta do Novo Código Florestal Brasileiro estabelece redução para 15 e 30 metros das Áreas de Preservação Permanente. A Lei Municipal de São Carlos fixa 50 metros para as APPs. O Município deve mudar a legislação atual? Dê sua opinião!
(____) Manter a lei municipal da forma que está
(____) Modificar a lei municipal adaptando ao Código Florestal
Justifique sua opinião. A justificativa é obrigatória.
A discussão proposta pela Câmara Municipal na Consulta Pública Digital foi restrita aos limites das APP’s, entre 15 e 30 metros, versos 50 metros que se diferenciavam entre a proposta da Lei Federal e da Lei Municipal em vigência, respectivamente.
Com esses 2 pressupostos começamos a notar um distanciamento na forma de operar das redes sociais em comparação com o espaço público digital, primeiro pela identificação, depois pela forma de capacitação na qual textos, artigos, vídeos, apresentações, etc devem integrar o espaço público digital. As funcionalidades para identificar e capacitar os interessados em participar de uma Consulta Pública Digital não desqualifica as redes sociais para o debate de temas importante. As redes sociais têm um papel definido, ocupam um espaço, e são importantes para o processo democrático, e muitas vezes elas têm-se mostrado eficazes para a discussão da coisa pública. No entanto, existem diferenças importantes entre a forma de operar das redes sociais e de uma ferramenta que estabelecerá o espaço público digital para que a sociedade possa interagir com o governo.
Por último, um terceiro pressuposto que deve existir na criação de um espaço público digital é o não estabelecimento de um fórum de discussão digital, como são a maioria das redes sociais, onde há interação, discussão, debate pela Internet dos membros desse fórum. Muitas vezes nos fóruns as discussões acabam polarizando e seus argumentos.
Existem temas que naturalmente são polarizados, ou seja, há pessoas que serão a favor e outras contra, por questões de crenças, valores e interesses. Nesses casos devemos contextualizar o tema na cidade, no bairro ou no cenário que melhor se adapta à discussão. É importante o administrador público buscar organizar, em temas naturalmente polarizados, os argumentos a favor e os argumentos contra, preservando a garantindo a exposição de argumentos da minoria. Em um fórum aberto de discussão dificilmente a minoria expõe seus interesses.
Autor: SANCHEZ, Ricardo Lopes, 2018.